Por Sílvio Bembem*
Em 13 de maio de 2018, apesar da integração precária do negro na sociedade de classes, falta ainda a integração do negro na sociedade política. Em 2011 escrevi artigo citando o livro clássico do sociólogo Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes (1964), onde o autor aponta os entraves para a integração dos negros na sociedade pós-abolição. O cientista político Décio Saes, no seu livro A Formação do Estado Burguês no Brasil (1985), com a abolição da escravidão (1888), a Proclamação da República (1889),a primeira constituição republicana do Brasil (1891) também não deixou de tocar no tema. E neste ano, 130 anos depois da abolição formal da escravidão, o quadro pouco mudou, bastando observar a assimetria étnico-racial, relacionada com os indicadores sociais, e as cruéis desigualdades e a pobreza na qual parte significativa da população negra ainda vive. De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), que é divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), fica explícito que no quesito: educação – Entre os negros e pardos, por exemplo, a taxa de analfabetismo sobe para 9,3%, mais que o dobro entre as pessoas de 15 anos ou mais de cor branca, que tem 4% de analfabetos; e no mercado de trabalho — dos 13 milhões de desempregado no terceiro trimestre de 2017, 8,3 milhões (63,7%) eram negros (pretos +partos), isso mesmo sendo a maioria da população (51%), continua mais vulnerável, sobretudo na região Nordeste que tem a maior taxa de analfabetos – 14,5% para pessoas com 15 anos ou mais de idade, bem acima do segundo colocado, o Norte, com 8%.
Logo no primeiro capítulo, dizia Fernandes: “A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos (ex-escravos), sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida do trabalho”.
Por esse trecho fica evidenciado que os africanos escravizados foram deixados à margem do novo regime. Tanto o Estado quanto a Igreja, segundo Fernandes, teriam sido os responsáveis por tal situação. E continua ele: “o liberto se viu convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva”. Essa citação explicita muito bem a situação de pobreza dos negros no Brasil, ainda hoje.
Quando se passa a analisar a condição em que ocorreu o processo da abolição, observa o sociólogo marxista que a mão-de-obra beneficiada com o trabalho assalariado da época (fruto do fim da escravidão formal dos negros e do advento do trabalho livre) foi ados imigrantes brancos europeus. Aqui começou a nascer a tão propalada classe média do país, aquela que recebeu no período pós-abolição os incentivos, a condição assalariada, a escola, a terra e outras formas de incentivo do Estado burguês nascente, o que não deixou de ser uma ação afirmativa (cotas) estatal para que os imigrantes europeus viessem para o Brasil, com o objetivo de desenvolver a nação. Já o negro liberto, “convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes”, foi deixado à própria sorte.
De acordo com Florestan, “à população liberta não foi dado nenhum benefício, nenhum incentivo por parte do Estado ou da Igreja, detentores do poder político e econômico da época”. Os africanos escravizados sequer tiveram qualquer forma de indenização pela exploração da sua força de trabalho. Por isso, é correta a defesa, por parte do movimento negro, de políticas de ações afirmativas como as cotas, para que o Estado brasileiro repare devidamente essa população, vitimada com a escravização, garantindo-lhes oportunidades e condições.
Destaca-se também que a luta pela regularização dos territórios das comunidades remanescentes de quilombos, já garantida na Constituição Federal de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT -, no seu artigo 68 (aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos), e no decreto n.º 4487/03 (que define as regras para o reconhecimento e demarcação de terras ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas), é um avanço na conquista do direito de reparação dessa população.
Florestan Fernandes, com esta obra de mais de mil páginas, passou a ser chamado por muitos pensadores de o sociólogo dos negros ou da escravidão. Este livro é uma dessas leituras essenciais e obrigatórias para todo estudioso e intelectual da questão racial no Brasil, cuja função não é outra senão a de apreender a formação social brasileira, como assinala o também sociólogo Antônio Sérgio Guimarães.
Essas reflexões levam a necessária e breve comparação com os dias atuais. Passados 130 anos da abolição formal dos escravos e 54 anos dessa obra clássica da sociologia brasileira, na qual o legado do povo negro na sociedade de classes é brilhantemente descrita por Florestan Fernandes, cabe a seguinte pergunta: E a integração dos negros na sociedade política? O autor não deixa de identificar a participação política dos negros já naquele período, que teria sido intensa e decisiva, principalmente a partir da fase em que a luta contra a escravidão assumiu feição especificamente abolicionista, tendo como exemplo a resistência quilombola.
Trazendo à tona o velho Marx, quando, no século XIX, analisou a sociedade capitalista, cindida pelo conflito capital versus trabalho, o debate central eram as relações de oposição entre burguesia e proletariado, o que perdura até hoje. Só que, no momento atual, outras novas categorias de análises se apresentam fortemente para entender as contradições da sociedade contemporânea burguesa/capitalista, que se concretizam em novos movimentos sociais: étnico-racial, gênero, orientação sexual, cultural e ambiental. Nunca antes as lutas desses novos movimentos sociais foram tão evidentes, mostrando o quanto questões como raça, gênero, dentre outras, somadas às desigualdades de classe, são também causa da assimetria da sociedade capitalista, estandoas mesmas, portanto, estritamente relacionadas.
Nesse sentido, a tarefa do movimento negro, de militantes antirracistas, ativistas dos direitos humanos, é a de compreender a importância da participação política como questão estratégica para o embate do presente, na sociedade política e na sociedade civil, como nos ensina Antônio Gramsci: “no Estado burguês é fundamental que os trabalhadores participem de forma ativa e orgânica da sociedade civil e da sociedade política”. Entender, portanto, que o que está em jogo é a disputa de hegemonia, logo, disputa ideológica e política do poder do Estado/Governo, principalmente em tempos em que a democracia dos políticos (aqueles investidos em altos cargos públicos na burocracia, os de mandatos eletivos, os presidentes/ dirigentes de partidos – às vezes “donos”-, os grandes empresários e/ou acionistas majoritários com relações permanentes com o Estado/Governo) é que são detentores da hegemonia, e não o povo-eleitor, a “ralé” como diz o sociólogo Jessé Souza.
Nota-se, assim, uma grande invisibilidade e sub-representação dos negros nos cargos importantes nas esferaspública(Executivo, Legislativo e Judiciário) e privada (empresas). Veja o que diz Milton Santos, dirigindo-se certa vez ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu artigo “Ser negro no Brasil”, publicado em 11/03/2001, no jornal Folha de São Paulo: “O próprio presidente da República considera-se quitado porque nomeou um bravo general negro para sua Casa Militar e uma notável mulher negra para a sua casa de Cultura. Ele se esqueceu de que falta nomear todos os negros (as) para a grande Casa Brasileira […] A questão não é tratada eticamente. Faltam muitas coisas para ultrapassar o palavrório e os gestos cerimoniais e alcançar uma ação política conseqüente. Ou os negros deverão esperar mais outro século para obter o direito de uma participação plena na vida nacional”. Apesar de alguns avanços com relação à inclusão social dos negros no governo Lula e Dilma, mas o quadro mudou muito pouco, e continua no governo do golpista Michel Temer. Fica-se a imaginar o que não estarão passando os nossos negros, homens, mulheres, crianças, jovens, pais de famílias da base da pirâmide social (os pobres) neste país distorcido, racista e desigual, neste momento!
Temos que nos convencer de que a democracia brasileira só vai se realizar se tiver uma representação de todos os setores da sociedade na estrutura do poder político, econômico, e na imprensa, como bem disse o antropólogo da Universidade de São Paulo – USP, Prof. KabengeleMunanga.
Portanto, é necessário entender a sociedade em que imperam o racismo (cor da pele) e as desigualdades cindidas em classes. E disputar econômica, politicamente e socialmente de forma organizada a sociedade do século XXI é tarefa que deve ser encarada como o grande desafio do movimento negro brasileiro. Pois, para integrar os negros na sociedade de classes há que se lutar também pela sua integração na sociedade política.
* Doutorando e Mestre em Ciências Sociais – Política (PUC/SP). Administrador. Servidor Público Federal do HU-UFMA, foi Secretário-Adjunto de Estado da Igualdade Racial do governo Jackson Lago (2007-2009).