Indicamos a leitura do artigo escrito pelo ex-ministro Joaquim Barbosa e Thiago Sorrentino, acerca dos interesses da população mais pobre na reforma tributária.
A população negra, principalmente a mais pobre do Brasil, precisa da nossa atenção, pois a pobreza em nosso pais tem crescido indiscriminadamente. Desta forma, a Negritude Socialista Brasileira se manifesta em apoio e defesa dos interesses destes.
Como a atenção e a energia pública e privada nacional estão quase inteiramente concentradas na questão sanitária, a discussão sobre a remodelagem do sistema tributário vai ficando em segundo plano. É claro que a perda de força do debate dessa questão também é fruto das profundas divisões existentes entre os vários grupos da vida nacional cujos interesses a reforma pode vir a afetar.
Tramitam no Congresso Nacional atualmente as PECs 45 e 110, o Simplifica Já e o PL 3.887/20. Porém, algo de muita relevância escapa à observação dos animadores de todos esses projetos de reforma – a paulatina reforma tributária paralela que se opera no âmbito do chamado contencioso tributário em curso no país.
Como a Constituição brasileira fixa como objetivos fundamentais da República o bem-estar social, o fortalecimento dos princípios democráticos, o desenvolvimento econômico, a redução da pobreza e das desigualdades sociais que tanto nos singularizam, uma reforma tributária consequente precisa ter ao menos dois propósitos essenciais: permitir a organização de forma equilibrada do sistema produtivo, de modo a distribuir entre os diversos setores da economia sua parcela justa de contribuição e, não menos importante, ter como alvo o indivíduo.
A tributação é um elemento essencial e estruturante das sociedades, e isso desde tempos imemoriais. Tributar é fazer com que cada integrante da “polis” contribua concretamente para o bem comum na exata medida da sua capacidade. Da soma das contribuições de cada cidadão e de cada ente produtivo decorre o desenvolvimento econômico, a melhoria generalizada das condições de vida e de empregabilidade e a distribuição de renda.
Aparentemente, parece haver amplo consenso sobre pelo menos um ponto: o Brasil precisa instituir um sistema tributário mais simples, mais claro, mais transparente e que rompa de vez com as proverbiais ambiguidades legislativas geradoras de impasses interpretativos que estão na origem do barroco contencioso tributário que paralisa tanto o poder Judiciário quanto as instâncias decisórias administrativas especializadas vinculadas ao poder Executivo.
Numa palavra, é urgente aprovar uma reforma que reduza a incerteza e que se traduza em menores custos para os setores que comprovadamente geram empregos, com a contrapartida de que a diminuição do chamado “custo Brasil” efetivamente estimule a criação de novas vagas de trabalho. Mas, é preciso dizer, só a simplificação não basta.
A ideia de se instituir o chamado Imposto sobre Valor Agregado com rigorosa alíquota única pode ser parte da solução. Parece claro que a atual concentração de benefícios fiscais na ponta da arrecadação se mostra altamente ineficiente, seja porque favorece de maneira pouco criteriosa certos nichos sociais sem a contrapartida de benefícios palpáveis ao cidadão.
É imprescindível, pois, reformular o sistema para que os benefícios fiscais tenham impacto sobre aqueles que realmente deles necessitam, de modo direto. Um sistema de alíquota única também pode ser benéfico para o objetivo paralelo e importante de diminuir o número de controvérsias jurídicas e, por extensão, de reduzir a litigiosidade, que é especialmente elevada no campo tributário.
Note-se, porém, que entre as propostas em discussão há zonas de sombra e não faltam temas polêmicos. Seria de bom alvitre, por exemplo, que as propostas de mudança indicassem claramente quais serão os critérios de realocação da carga tributária, uma vez que já circulam estudos a indicar que a tributação dos setores financeiro e industrial será deslocada para o setor da prestação de serviços. Uma mudança de tal envergadura seria economicamente eficiente? Estaria ela em harmonia com o nosso pacto social?
Questão igualmente espinhosa é a relativa à proposta de introdução de um prazo relativamente elástico de transição do regime atual para o regime proposto, podendo o lapso temporal chegar a dez anos. Como se sabe, o Brasil está longe de possuir um histórico brilhante no que diz respeito ao cumprimento de promessas públicas e ao atendimento a expectativas legítimas das pessoas. E a justificativa para não se honrar os compromissos públicos invariavelmente é a mesma: o multifuncional princípio da “reserva do possível” – alegação que soa no mínimo paradoxal, já que externada invariavelmente por um Estado ao qual raramente faltam recursos para honrar despesas cuja urgência é no mínimo questionável.
Para lidar com a incerteza, o regime de transição deve prever mecanismos rígidos para impedir “puxadinhos” que desfigurem a estrutura da reforma, além de impedir a postergação indefinida de seu prazo. Caberia ao Congresso especial atenção para não ceder à tentação de criar pequenas “exceções” na definição das alíquotas, as quais serviriam apenas para beneficiar os grupos privilegiados de sempre.
Também seria altamente importante vincular a alíquota única à devolução personalizada dos incentivos à população de baixa renda sob a forma de benefícios diretos. É o caso dos benefícios destinados à cesta básica, cuja transformação em benefícios particulares diretos à população necessitada é uma obrigação inadiável. De fato, estudos do Ipea e do MF indicam que a verdadeira progressividade do sistema será atingida com esse mecanismo de devolução personalizada. Noutras palavras, o sistema novo somente poderá ser aplicado concomitantemente à criação dos benefícios diretos para a população carente do auxílio estatal. Por fim, mas não menos importante, a reforma tributária deve vir acompanhada ou imediatamente secundada por uma criteriosa revisão das regras de direito orçamentário.
Nosso sistema orçamentário é opaco e propenso a burlas. Nele se escamoteiam os reais destinatários dos recursos públicos, nos seus escaninhos se escondem incontáveis interesses paroquiais nem sempre compatíveis com os interesses superiores da nação. Nenhuma reforma tributária produzirá efeitos positivos se o sistema de gastos permanecer inalterado.
Em resumo, deve ser dada prioridade à reforma tributária que incorpore mecanismos aptos a garantir a segurança jurídica do cidadão, que reduza de maneira significativa a complexidade e a litigiosidade inerentes ao sistema como um todo e que promova o imediato resgate ou a introdução de benefícios fiscais que sejam justificáveis à luz do pacto republicano. Em suma, restaurar a confiança no Estado-tributário, conferindo-lhe credibilidade e legitimidade.
Joaquim Barbosa serviu aos três Poderes da República. Em 1984 foi empossado no cargo de Procurador da República. De meados de 1985 até o final de 1987 foi chefe da consultoria jurídica do Ministério da Saúde. Em junho de 2003 tomou posse no cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. De 2012 a 2014 foi Presidente do Supremo Tribunal Federal.
Thiago Buschinelli Sorrentino é professor do IBMEC/DF, mestre em Direito Tributário e doutorando em Ciências Jurídicas.
O artigo pertence ao: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/destravar-qual-reforma-tributaria.ghtml