Por Isa Cristina Brito Pinheiro
Era 1988. Encontrava-me numa instituição para um teste seletivo para ocupar o cargo de auxiliar administrativo com as seguintes etapas de avaliação: entrevista com o chefe de gabinete, teste de datilografia e redação de uma carta solicitando a vaga. Por pouco, não fui embora, pois se exigia boa aparência, o que se pressupunha padrão de beleza que não condizia com meu aspecto: negra, de cabelo black power em meio a moças brancas, de cabelos lisos, para trabalhar em local composto exclusivamente por pessoas brancas.
Pensei comigo: o que fazer aqui, será que vão avaliar meu currículo e realizar os testes? Vou ficar até o fim, já tinha a certeza de que os desafios, as lutas e as dificuldades eram a minha chance de crescer. Meu objetivo era melhorar o salário que ganhava e continuar fazendo minha faculdade de administração, pois já era concursada, servidora pública. Mas a remuneração não permitia continuar os estudos e, aprovada nos testes, passaria à funcionária celetista desse órgão público, sem vínculo maior. O mais importante para mim, então, não era a estabilidade, mas meus estudos.
Pronto, chegou minha vez! Entrei na sala de entrevistas, o chefe do órgão leu meu currículo e indagou o motivo de me considerar negra e eu disse: “Não me considero, sou negra”. Ele me respondeu: “Negra não. Você tem traços finos, mas eu vou fazer o teste com você”. Já estava muito constrangida pelo pensamento depreciativo desse senhor em relação ao negro. Segui no teste: datilografei, redigi e fui embora com a frase na cabeça: “Negra não, traços finos”.
Continuei trabalhando onde estava, sem esperança de conseguir a vaga de auxiliar e avaliando por muitos dias a situação que vivi: “Negra não, traços finos”. Pelo requisito de boa aparência, eu estaria reprovada. Mas, por quê? Tinha a certeza de que o processo seletivo me reprovaria. Quinze longos dias se passaram e recebi o telefonema do chefe do órgão me perguntando se eu poderia retornar para conversar com o diretor que aprovou o meu teste.
Eu prontamente compareci no dia e hora marcados. Quase nem vi passar o tempo no retorno ao meu trabalho. Caminhei lentamente para o andar, questionando-me ainda se, uma vez aprovada para a vaga, estaria me omitindo sobre a situação do negro na sociedade e sobre esse caso de preconceito racial.
Quando entrei no gabinete do diretor, senti uma força própria da raça negra, que é a força da superação, mesmo consciente do que a cor da pele significava naquele lugar, e desejosa de mostrar a capacidade que tinha, independentemente de se tratar de uma pessoa branca, negra ou de traços finos. E a mesma frase foi repetida pelo diretor quando entrei na sala: “Mas você não é negra, tem traços finos, quer fazer uma experiência?” Aceitei o emprego, desligando-me de um trabalho que me dava estabilidade e, mais do que a vontade de estudar, nasceu em mim o desejo de mostrar que a pessoa negra, seja de que maneira a classifiquem, tem capacidade para se destacar na sociedade.
Muitas vezes acordei desanimada para trabalhar. Convivia com pessoas tão tóxicas que tentavam minar a motivação de ganhar o pão de cada dia e alcançar meus objetivos. Mas continuava na certeza de que, mesmo não contando sempre com total energia, é nessas horas que nossa capacidade de resistir faz toda a diferença, ao enfrentarmos o dia a dia com determinação e saber que o melhor ainda está por vir.
Conquistei, afinal, minha graduação e, de auxiliar administrativo, galguei a chefia de gabinete do órgão, cargo ainda pouco ocupado por pessoas negras. O racismo velado continua e os enfrentamentos também. Continuo chocada pelo fato de as pessoas que o cometem não assumirem o que fazem e ainda negarem o preconceito. Isso se faz presente, principalmente, quando não nos reconhecem em cargos com prestígio social.
Por fim, refletindo sobre 1988, percebo que não me omiti sobre a situação de preconceito racial e deixo o exemplo de resistência de traços culturais herdados dos nossos ancestrais, experiências tocantes transformadas em aprendizados, que produziram em mim coisas boas até os dias de hoje: perseverança, esperança e confiança na imensa capacidade do povo negro em desenvolver suas habilidades.