Impostergável de se faz uma ruptura com a visão de que a assistência social é uma política residual, compensatória, subjugada aos interesses da política econômica ou apenas uma manifestação do compromisso ético fragmentado de alguns setores da sociedade expressa no âmbito da filantropia ou da responsabilidade social do mundo empresarial.
É muito mais que isso!
Não pelas razões e motivações corporativas, mas por um imperativo da realidade.
Realidade que vem pautando a massa crítica dos atores da assistência social (em especial os profissionais de Serviço Social no mundo acadêmico ou da gestão pública) com muita ênfase desde o início dos anos 90, forjando conteúdos que derivaram na LOAS em 1994.
São Paulo foi sem dúvida o palco privilegiado para a estruturação de uma visão inovadora e mais condizente com as exigências, repito, da realidade. Aliança estratégica e vínculos ideológicos entre a PUC São Paulo e a Secretaria de Bem- Estar Social do Município de São Paulo, criaram espaços e condições fertilizantes para a materialização do desejo de construção de uma nova prática e nova mentalidade no campo da assistência social.
A base desse pensamento explicitado num Seminário realizado entre 3 e 4 de julho de 1991, realizado na Prefeitura e consubstanciado num documento “Declaração de São Paulo”, revela e rechaça a historicidade da Assistência Social com ações de caráter emergencial e paliativo, desarticuladas de uma Política Social mais ampla. Ações essas ao sabor da dimensão das crises econômicas e das estratégias para dividendos políticos na prática do clientelismo.
A importância do protagonismo dos profissionais na construção de uma nova política materializada na futura e próxima LOAS, afirma-se ainda mais pelo fato dos usuários carecerem de grau de consciência, mobilização e organização para lutar pelos direitos sociais e políticos.
A política de assistência social desvinculada das políticas sociais faz perpetuar sua natureza pontual e emergencial ao invés de estar inscrita como política permanente no campo dos direitos sociais e da conquista da cidadania.
O conceito de cidadania tão fortemente impregnando as políticas públicas em vários setores entra na agenda da assistência social de forma robusta e definitiva e define um pressuposto de concepção e ações que vem adquirindo corpo e reconhecimento da opinião pública ao longo de quase três décadas.
Esse acumulo legal-normativo e de consciência aponta como desafios maior vigor e saltos de qualidade para estabelecimento de políticas estruturantes, de segunda e terceira geração cada vez mais imbricadas e parceirizadas para o pleno exercício da cidadania, autonomia, e emancipação econômica no mundo do conhecimento, trabalho e geração de emprego e renda.
Grande desafio para o sistema de proteção social no Brasil é a consolidação e aperfeiçoamento da democracia. Para tanto é imperioso um diálogo constante, profícuo e sobretudo responsável entre os três poderes da República. Salta aos olhos no processo democrático a importância da participação social e o controle público na implementação e avaliação das políticas sociais. A política de assistência social deve assumir um papel preponderante como agente promotor/indutor de cidadania.
Faz-se necessário a participação dos governos em todas esferas e da sociedade civil, para que, além de democrático o sistema de proteção social no Brasil seja eficiente, eficaz e efetivo; seja uma caixa de ressonância das demandas da realidade.
Vale recordar Iglesias, quando na “La busqueda de um nuevo consenso economico em America Latina” (BID) chama atenção para a necessidade de promover a negação de modelos abstratos e teóricos deslocados da realidade histórica, superar atitudes radicais, preconceituosas, doutrinárias e maniqueístas.
Essa perspectiva de Iglesias tem inspirado o esforço de muitos para perceber que o Brasil vive uma realidade emergente contínua e um processo muito rápido de mudança também do ponto de vista dos costumes que exige uma abertura mental corajosa.
Essa atitude é fundamental para a compreensão e enfrentamento dos grandes e novos desafios e o aprofundamento do compromisso com a formulação de consensos na área social, incorporando novas temáticas e novos atores plurais e significativos dando as costas para o conservadorismo e anacronismo que ainda persistem em vigorar em nossos dias.
Iglesias, recorre a Albert Hirschman neste brilhante e ainda atual ensaio. “Um dos principais erros cometidos pelos latino-americanos consistiu em pedir aos governos mais do que eles podiam fazer. Ao mesmo tempo, a capacidade discriminatória da intervenção do Estado, unida ao poder acumulado por grupos de pressão em sociedades em pleno processo de desenvolvimento e articulação interna, conduz ao paradoxo de que muitas politicas aplicadas em nome de setores mais pobres terminaram beneficiando grupo de renda mais alta e os próprios burocratas”
Em nome do social, de sua intocabilidade, e às vezes sacralidade, muitos erros foram cometidos e muitos recursos desperdiçados e desviados dos seus reais e necessitados beneficiários.
No Brasil, a política social criada a partir dos anos 30, ainda guarda resíduos que urgem serem superados, resíduos marcados fortemente pelo clientelismo, fisiologismo, primeirodamismo, descontinuidade, pulverização, fragmentação e sobretudo falta de uma perspectiva universalista geradora de injustiças e discriminação para não dizer também de discricionariedade.
As políticas sociais estiveram permanentemente desarticuladas das macroeconômicas; se observa uma notável descontinuidade e se caracterizam por uma escassa relação entre seus componentes. Os marcos institucionais são rígidos e marcados por interesses corporativos, os recursos disponíveis para fins sociais se encontram vinculados a programas pré-existentes, com uma tipificação inflexível muitas vezes de costas ou na contramão das demandas reais, crivadas pelas diferenças regionais e tamanha diversidade em um país de dimensões continentais como o Brasil.
Impostergável que uma proposta concreta, robusta na área social, particularmente na área da assistência social adquira velocidade, adesão de significativos atores no campo social, econômico e político e tenha capacidade de sobrepujar o “velho” e “indesejável”, tendo como horizonte a emancipação e dignidade dos excluídos e a superação da pobreza.
Produzir novos consensos e um novo padrão de coesão em relação aos desafios da assistência é o principal desafio. Talvez é preciso se inspirar no padrão/experiência de consenso formatado em 1993 entre a sociedade civil, o mundo acadêmico, os gestores sociais, as entidades filantrópicas, os movimentos sociais, o governo, e o congresso nacional que permitiu a criação da Lei Orgânica da Assistência Social, sancionada pelo Presidente Itamar Franco em 07 de dezembro de 1993.
Acreditamos na importância da sociedade civil na formulação, implementação e controle e avaliação das políticas públicas, participação consagrada em lei ou em decretos governamentais referentes aos CONSELHOS. Todavia não podemos deixar de assinalar o caráter deletério da atuação de alguns conselhos, o que reclama e impõe urgente a superação do padrão conflitivo, ideológico, inconsistente e pouco pragmático ainda presente no comportamento e na cultura de fortalecimento de dissensos ainda presente em atores sociais que integram o corpo de conselheiros que tem assento nas instâncias de representação, nos espaços democráticos. Espaços tão vitais para o dinamismo e efetividade das políticas públicas e não raro resvalam para paralização, descrédito, comprometendo de forma radical a consolidação e avanço de programas e ações de interesse do conjunto da sociedade que não podem ser reféns de interesses corporativos e/ou subterrâneos.
Uma nova cultura e compromisso cívico que supere as legitimas divergências eleitorais, em outros momentos e espaços deve nortear uma nova opção política, imprescindível ao avanço das políticas sociais, sobremaneira no campo da assistência social e dos direitos humanos. Essa opção política exige um olhar mais racional e um mesmo ritmo, para que se consiga enxergar e operar no horizonte do interesse maior e real da Nação como um todo.
Infelizmente a percepção pública da urgente e imperiosa Reforma do Estado no Brasil têm sido muito mais vizualizada pelo lado das perdas de alguns segmentos específicos, na maioria já portadores de privilégios, do que pelos ganhos da sociedade como um todo, em particular a imensa maioria de excluídos em situação de extrema pobreza, e acentuada vulnerabilidade e risco social.
A sustentabilidade política da assistência social é o principal desafio e podemos dizer o principal dilema a ser superado. O Brasil já, a um quarto de século salvou os segmentos mais empobrecidos da chaga deletéria da hiperinflação. Mas há muito o que fazer para além da estabilidade monetária para consolidar um projeto de crescimento econômico e desenvolvimento sustentável.
Serviços sociais básicos, universais e eficientes no âmbito da saúde, educação e assistência social, atuando de forma complementar e integrada estão na essência de um projeto de desenvolvimento nacional.
Nessa perspectiva ampla e indispensável, precisamos nos ater às exigências de que os dirigentes e gestores públicos, em particular os agentes governamentais não sejam apenas sensíveis às demandas sociais e os reclamos dos excluídos mas estabeleçam nexos entre a ação política e a ação social de forma adequada e responsável.
Necessário superar uma certa cumplicidade congênita com a cultura da pobreza; imperativo superar alguns mitos imbricados historicamente no gerenciamento das políticas sociais, sobretudo, na política de assistência social. A ênfase no processo e não no resultado; o maior apego ao problema e não com a solução, a vagarosidade nos procedimentos e fluxos de encaminhamentos distanciados da ética da urgência. Vários fatores negativos inerentes a gerência da assistência social, enraizados na prática e na visão de mundo de alguns agentes sociais corroboram a visão equivocada de que o gasto social é ilegítimo e não um investimento imprescindível no conjunto de projeto de desenvolvimento de uma Nação.
Necessário integrar a vontade política e o compromisso de todos em relação ao “social” a um gerenciamento competente. Nesse sentido é indispensável a participação da comunidade, além da adesão aos programas; necessário assegurar a capacidade resolutiva descentralizada do poder local e ainda trabalhar de forma flexível, levando em conta a heterogeneidade das muitas realidades e demandas diferenciadas de um país continental.
Não raro, em algumas localidades, os benefícios e a ações desaparecem, ou são desviados para finalidades não previstas ou mesmo espúrias.
Essa constatação traz a nu e a luz o dilema centralização X descentralização; todavia esse desafio só poderá ser enfrentado com o aperfeiçoamento dos sistemas gerenciais de informação, avaliação e transparência, capacitação dos gestores sociais municipais, e sobretudo, pela efetiva, autônoma e qualificada participação da sociedade civil no controle social das políticas públicas.
Acreditamos que a política social não pode estar limitada a atenuar os impactos negativos ou regressivos das políticas econômicas. Também acreditamos que uma política econômica inclusiva aos segmentos excluídos, converte-se em política social. Acreditamos na centralidade da assistência social como fiadora do sentido humanitário e solidário que deve reger as relações humanas e a relação dos beneficiários com os serviços sociais setoriais básicos. Não é por acaso que as ações de “fortalecimento de vínculos” no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS )vem tendo cada vez mais adesão e importância.
Falar em desenvolvimento exige a compreensão da necessária superação do predomínio do econômico e da articulação entre as políticas sociais entre si e dessas com as políticas econômicas.
Pedimos licença para relembrar os anos 90, quando floresceu o pensamento crítico em relação a supremacia do econômico sobre o social citando trechos contidos no Informe da (Comision Latinoamericana y del Caribe sobre Desarrolo Social – CEPAL. 1995)
“Derrotar a pobreza, o desemprego, a marginalidade social é…. a maior tarefa para América Latina e o Caribe. Nesta tarefa há espaço para todos: Estados, sociedade civil, empresários, trabalhadores, ONG’S e os próprios afetados. ( ?) Essa tarefa tem custos, que devem ser assumidos sobre as bases da justiça e solidariedade.”…
…”O vigor… reside na população que deseja alcançar plenamente a dignidade cidadã. De população a cidadania. Neste processo indispensável, a cultura se acercará da política, a criatividade da economia e a pobreza da prosperidade. Uma prosperidade modesta, democrática, civilizada, memoriosa…. Contribuamos, a partir de nossa experiência social, intelectual, artística e jurídica a um mundo cada vez mais problematizador, mais inédito, mais perplexo ante o que deixa para atrás e o que ainda não percebe. A cultura fluida latino-americana tem raiz histórica, porém, também tem promessa auroral” … e muita esperança
Denise Paiva. Assistente Social
Abril de 2019.