Cêsabe que eu sonhei muitas vezes que a gente tinha essa prosa, assim, desse jeitim. Eu e ocê, aqui, olho no olho como num último capítulo de novela. Com estas palavras, já no finalzinho do filme, Maria da Ajuda, a Jú, expressa o desejo de se reaproximar da irmã Maria Aparecida, Cida. E não é que o filme Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, bem que poderia ter o seu argumento transformado em uma novela mesmo? Em sua primeira inserção pela ficção, o diretor demonstra as influências de seu trabalho anterior, o documentário “A Negação do Brasil”(2000), no qual analisou os estereótipos e a falta de protagonismo dos afrodescendentes nas telenovelas entre 1962 e 1994. Filhas do Vento (2004) é um drama com a atuação de atores negros de várias gerações, sendo as protagonistas Jú (Léa Garcia) e Cida (Ruth de Souza) oriundas do glorioso Teatro Experimental do Negro (TEM), um marco na dramaturgia brasileira e um bastião de combate ao racismo e formação de atores negros, sob a liderança de Abdias do Nascimento. Em uma pequenina cidade mineira, Cida (Taís Araújo/Ruth de Souza) e Jú (Thalma de Freitas/Léa Garcia) são irmãs criadas pelo pai, Zé das Bicicletas (Milton Gonçalves), rancoroso por sua esposa tê-lo abandonado e as suas filhas. Enquanto Cida nutre a vontade de se tornar uma atriz famosa enquanto ouve radionovelas interpretando-as, Jú pensa em namorar e viver a vida conforme as possibilidades do pacto lugarejo. Um mal entendido faz com que Cida seja expulsa de casa, sem que Jú esclarecesse ao rigoroso pai a verdade do acontecido, fato que nutrirá mágoas e ressentimentos por 45 anos, e o reencontro entre as irmãs só acontece no velório do pai, quando Maria Aparecida ( a que aparece) surge e se depara com Maria da Ajuda (aquela que ficou para ajudar o pai e a manter o que sobrou da família). O segredo que fez com que Cida se afastasse de suas raízes também produz ressentimento entre ela e o fruto do seu ventre. Selminha (Maria Ceiça) tem problemas de relacionamento com a mãe, originados da recusa da última em revelar a identidade de seu pai. Cida parece dar-se melhor com a sobrinha Dorinha (Daniele Ornelas), que luta para ser atriz como a tia, enquanto Selminha demonstra construir maiores afinidades com a tia Jú. Cida, uma solitária atriz de cinema e televisão, carrega as frustrações de sempre ter lutado por papéis que transcendessem os lugares comuns que em geral são a maioria dos papéis reservados a atores e atrizes negras no Brasil. Jú, que nunca deixou o interior, passou a vida cuidando do pai, dos filhos e dos netos, e não constrói uma identidade profissional, segue a vida namoradeira e faceira. Em Cida, há um arquétipo da trajetória de inúmeras atrizes negras cujos depoimentos Joel Zito se valeu para realizar A Negação do Brasil (que também resultou em uma tese de doutoramento, tamanha a densidade do material coletado). Várias questões que envolvem o cotidiano do negro no Brasil estão presentes na obra: solidão da mulher negra, sexualidade, piadas racistas, tensões familiares, identidade profissional e uma lírica reflexão do que é ser negro neste país, sobretudo ser mulher negra. Não é todo dia que se faz isso com poesia e leveza. Raramente se tem um conteúdo audiovisual com tantos atores e atrizes negros como em Filhas do Vento, que ainda nos brinda com a oportunidade de termos a atuação de Zózimo Bulbul, um dos atores favoritos de Glauber Rocha e exímio cineasta, interpretando Marquim na fase adulta (personagem também interpretado por Rocco Pitanga, na juventude). As expressões lingüísticas regionais e os ditados populares dão uma riqueza a obra, complementados por uma boa pesquisa de figurino e uma fotografia que nos faz mergulhar nas Minas Gerais dos anos 1960 em tons pastéis e, 45 anos depois, uma profusão de cores e um realce a pele negra das mulheres de uma família que é a afirmação do Brasil. A música de Marcus Viana, composta especialmente para o filme, emociona e nos prende a atenção a tela (telona, tela, telinha…) em uma épica interpretação de Ladston do Nascimento. Filhas do Vento bem que poderia servir de argumento para uma telenovela moderna, cheia de personagens negros e com uma carga dramática a altura dos mesmos folhetins que negaram a atrizes e atores como Cida, Dorinha, Ruth de Souza, Léa Garcia, Grande Othelo, Milton Gonçalves e tantos outros a possibilidade de serem protagonistas e sem papéis estereotipados. Não foi coincidência que Cida ouvia a radionovela O Direito de Nascer, também um clássico da teledramaturgia, apesar dos preconceitos identificados pelo diretor em A Negação do Brasil.
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Autor: Prof. Rafael dos Santos
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