Compondo o encerramento da programação do Novembro Negro da Negritude Socialista Brasileira, convidamos o prefeito de Cavalcante (GO), Vilmar Kalunga, para uma entrevista exclusiva sobre o enfrentamento ao racismo e as perspectivas para o próximo ano. De acordo com a CONAQ, Vilmar seria o segundo prefeito quilombola na história do Brasil. Antes, em 2012, Darcira foi eleita prefeita de Açucena (MG), e depois reeleita em 2016. Vilmar nasceu no Vão do Moleque, povoado do Quilombo Kalunga, foi representante da associação de moradores do território e ganhou visibilidade local ao lutar pela demarcação de terras na região.
NSB: Qual a avaliação que o senhor faz da conjuntura política nacional deste ano?
Vilmar Kalunga: A avaliação política que faço a nível nacional é que com o avanço da extrema-direita e a projeção de seu movimento e liderança, ficamos sujeitos a uma governança de inclinação fascista, de promoção de valores autoritários e ameaças constantes às nossas conquistas e instituições democráticas. Vimos um projeto de poder baseado na violação de direitos fundamentais. Uma política desumanizada e que fez uso da máquina em benefício próprio e de grupos de interesse. Vimos a política ser colocada acima de tudo, mas norteada pelo desprezo ao ser humano e suas necessidades. Testemunhamos o uso da religião na política, ignorando princípios do Estado Laico. Inclusive, vale dizer que esse modelo de política elevou os níveis de intolerância e desrespeito à diversidade, descumprindo descaradamente a nossa constituição federal. Neste atual cenário é fundamental inserirmos uma cultura de paz, de paz e inclusão pois a irresponsabilidade na condução de políticas de inclusão, feriram a todo momento o princípio de igualdade, segundo o qual todos os brasileiros são iguais perante a lei. Testemunhamos e sofremos as consequências da desconstrução das políticas para promoção da igualdade racial. Presenciamos o patrocínio do racismo estrutural e a instrumentalização da Fundação Palmares, na tentativa cruel de apagamento da memória da população negra, com a atuação desastrosa de quem deveria fortalecer a luta e não atacá-la, negando sua própria raiz. É inadmissível e uma afronta, autoridades públicas disseminarem discursos racistas, instucionalizando ações e declarações criminosas contra o povo negro, povo que representa 56% da nossa população brasileira. Assistimos o desmonte das políticas públicas nacionais voltadas às comunidades quilombolas e a violação massiva de direitos dos povos indígenas. Infelizmente, vimos um governo que deteriorou a luta pela igualdade social, pelo meio ambiente, por direitos humanos, prejuízo sem precedentes e que se estende a diversas lutas mais do que legítimas. Precisamos colocar os desafios comuns sob a mesa, resgatar e ampliar tudo que havia sido conquistado. Acredito que com união, a recuperação não é só urgente mas também possível.
NSB: Para o senhor, quais os caminhos para construirmos uma democracia sem racismo?
Vilmar Kalunga: Acredito que o caminho que devemos seguir para a construção de uma democracia sem racismo implica prioritariamente no fortalecimento real da causa. Não podemos aceitar ameaças autoritárias e insensíveis à nossa luta, a banalização da violência racial e a invisibilidade e pouco apoio ao desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades negras tradicionais no Brasil. Não podemos aceitar a negação da existência do racismo estrutural e institucional. É preciso reconhecer que a mentalidade racista é a base das desigualdades na sociedade brasileira, sociedade que foi estruturada dentro de uma lógica racista e que acabou se perpetuando ao longo da história. Para combater o racismo é urgente contar a verdadeira história e para isso é preciso apostar na educação. A Lei 10.639/2003 tornou obrigatória a inserção dos conteúdos sobre a História e Cultura Afro-brasileira nas escolas, trazendo às futuras gerações a oportunidade de desenvolverem uma consciência de respeito pelo outro, independentemente da sua cor ou etnia. Essa lei veio para educar o Brasil, para falar sobre o valor que diferentes povos têm na formação cultural brasileira e para superar a ignorância que alimenta o racismo. A luta por uma sociedade sem racismo, discriminação e preconceito deve caminhar ao lado de uma educação libertadora e de qualidade. Nós, gestores públicos municipais, enfrentamos muitos desafios, mas o nosso compromisso com a educação, nosso olhar sobre as nossas escolas e o apoio do governo federal na efetivação dessa lei, podem sim fazer muita diferença e transformar essa triste realidade em nosso país.
NSB: Quais as perspectivas para o Brasil de 2023, o Brasil reconstruído por todos nós?
Vilmar Kalunga: Vamos reconstruir o Brasil, a perspectiva é essa! Somos capazes de reerguermos novamente o nosso país e faremos isso com a chegada de um governo democrático e disposto a uma reconstrução nacional. É preciso reverter essa imagem negativa e recuperar o respeito internacional e a atenção à agenda ambiental será muito importante. Com planejamento, estratégia e engajamento conseguiremos alcançar um Brasil para todos, uma nação consciente, um país sem exclusão. Reforço a pauta ambiental de preservação do bioma cerrado e a importância do compromisso com as comunidades de povos tradicionais, do seu reconhecimento, proteção e defesa de seus direitos étnicos e territoriais. A expectativa quilombola é de que o trabalho de base seja fortalecido e que haja apoio não só do governo, mas da pluralidade partidária que o compõe, fazendo-se necessário mais do que nunca, suporte e incentivo em torno desse trabalho. Precisamos de um plano de governo efetivo, de um plano de ação do PSB voltado para esta causa. Convivemos com limitações que dependem também de vontade política para serem definitivamente solucionadas. Não trago novidades, trago algumas demandas básicas como acesso a serviços de saúde de qualidade, investimento em educação nos territórios, a ampliação das políticas de bolsas nas universidades brasileiras para garantir a presença de estudantes quilombolas no ensino superior, a manutenção da lei de cotas e inclusão de reserva especifica para os quilombolas, e o pedido urgente de que o Estado brasileiro amplie a visão sobre o reconhecimento dos territórios quilombolas e o direito à terra. Como prefeito Kalunga, socialista e liderança quilombola, vejo a necessidade de autoridades conhecerem o território, se aproximarem mais, ouvirem o povo e tomarem conhecimento das reais necessidades e características desta população. Sigo otimista pois vejo a possibilidade da criação de políticas públicas mais assertivas, políticas traçadas com base em dados atualizados e informações detalhadas, uma vez que pela primeira vez na história, o IBGE realizou neste ano (2022), o censo demográfico em nossas comunidades quilombolas. Em Cavalcante, Chapada dos veadeiros, nordeste goiano, continuaremos trabalhando e acreditando em dias melhores, pois, juntos somos mais fortes.